Em ano em que se comemora os 400 anos do nascimento de Molière o Teatro do Bairro traz à
cena a peça Don Juan, homenageando o autor e o teatro barroco francês, um movimento que anunciou o Iluminismo, entrando em ruptura com os temas de cariz religioso e com a própria
concepção plástica dos espectáculos. As três portas da cena grega são substituídas por telões pintados onde se explora a tridimensionalidade do espaço e a perspectiva.
O tema de Don Juan teve um tratamento diversificado, desde a primeira vez em que surgiu, por volta de 1630, com uma peça de Tirso de Molina (El Burlador de Sevilla y convidado de
piedra) até aos nossos dias. A peça de Tirso, apresentando o destino implacável dum homem dissoluto e imoral, incapaz de arrependimento, teve de imediato várias versões em Itália,
algumas das quais foram representadas com enorme sucesso no Thêatre des Italiens, em Paris. Foi nelas que Molière se inspirou, para escrever o seu Don Juan, considerada uma das
suas obras primas, juntamente com Tartufo e O Misantropo. O carácter religioso e edificante das primeiras versões, sob o espírito do Concílio de Trento, foi substituído em Moliere por um
tratamento muito mais “humano” da personagem, que seria adaptado por diversas versões posteriores do mesmo tema, destacando-se o Don Giovanni, de Mozart, com libretto de
Lorenzo da Ponte, e diversos grandes textos de autores posteriores, entre os quais podemos referir Hoffman, Pushkin, Gluck e Richard Stauss.
Ao que parece, Molière terá escrito a sua peça como reacção ao mau acolhimento dado a Tartufo, que foi proibido por Luis XIV por pressões eclesiásticas, pondo em contraponto a
religiosidade hipócrita da personagem que dá o título àquela obra e um comportamento ostensivamente amoral e irreligioso (quase um “ateu racionalista”) de Don Juan. Há quem
aproxime a personagem concebida por Molière do homem nietzschiano, desprovido de valores transcendentes, de natureza prometeica, que julga ter a capacidade de dominar o seu
próprio destino. Depois da proibição de Tartufo, e de várias tentativas goradas para ser reposta a sua representação, Molière reage com um texto teórico e com a escrita de Don
Juan. Nesse texto (“Premier Placet au roi”), o autor desenvolve a ideia de que o dever da comédia é “corrigir os homens, divertindo-os”, atacar os defeitos do seu século, a começar
pela hipocrisia, “um dos vícios mais em voga e um dos mais perigosos”, tema que era nuclear em Tartufo. Don Juan, pelo contrário, despreza a hipocrisia, é escandalosamente directo, não
tem consciência moral, é um sedutor infiel, mentiroso, orgulhoso, insolente, pondo em questão os valores da época (honra, casamento, família, religião), ignorando e troçando do
castigo divino. Não existe nele arrependimento, mesmo no momento final em que é levado para a morte pela mão da Estátua do Comendador.
Como contraponto a esta personagem, e de certo modo encarnando os valores morais e sociais vigentes na época, temos a personagem de Esganarelo, no fundo um criado
característico do teatro clássico, poltrão, interesseiro e guloso, que, nesta peça adquire uma
outra dimensão, pela importância que adquire, acompanhando o seu senhor praticamente
em todas as cenas, tornando-se numa espécie de alter ego do seu amo, chamando-o à razão,
tentado a cada momento que ele se integre na sociedade, lembrando-lhe as hipotéticas
consequências da vida que leva.
As outras personagens, D. Elvira, os irmãos dela, o Pai, os camponeses, defendem os valores
sociais que regiam a sociedade francesa da época, os nobres caracterizados por uma enorme
dignidade, os camponeses com uma divertida rusticidade.
De realçar ainda a elegância e a justeza da linguagem utilizada, a harmonia da composição
das frases, fazendo desta comédia um dos exemplos mais marcantes do estilo do classicismo
francês.
Com a abertura do Teatro do Bairro em 2011, criou-se também uma nova companhia de teatro, que nasce já com oito espetáculos no curriculum e uma experiência de sete anos de produções: a Companhia Teatro do Bairro. O grupo de autores, atores, técnicos e colaboradores que, ao longo dos anos, foram trabalhando com a Ar de Filmes - nomeadamente nos seus projetos teatrais - encontrou finalmente uma casa onde pode sedimentar e desenvolver o seu trabalho de forma regular e continuada. A gestão própria dos timings de ensaios e das temporadas das suas criações, sem os habituais constrangimentos inerentes aos calendários sempre muito preenchidos das tradicionais salas de espetáculos, possibilitou assim a consolidação desta companhia teatral, através de uma reflexão ininterrupta que contagia as criações e afirma o caminho artístico previamente traçado. Na direção artística da Companhia Teatro do Bairro está António Pires, que tem desenvolvido um trabalho que se poderia designar como "Teatro Coreográfico" - onde o texto e as imagens se fundem como se de uma coreografia se tratasse. Ao longo do seu percurso artístico, tem apresentado trabalhos a convite de várias entidades, mas é na Companhia Teatro do Bairro que desenvolve o seu trabalho autoral como encenador.